Tradições

Reis

"Eram 10 horas e 17 minutos quando o comboio entrou na Estação. Sobem ao ar foguetes. A banda musical atroa aos ares com uma marcha real (...) na assistência há palmas e gargalhadas".

Foi em 1923 que se iniciou a tradição de fazer a receção ao Rei do Carnaval, "chegando no comboio, após o que percorreu as ruas da Vila, integrado num cortejo".
A Rainha surgiu pela primeira vez no Carnaval de 1924, ano em que se atingiu uma animação de rua nunca antes vista.

A persistência do modelo dos "Reis do Carnaval" de Torres é surpreendente pela sua composição (sempre dois homens, por razões que a tradição social explica), pela pose sarcasticamente grandiloquente, pelos adereços desconcertantes ou pela sua afirmação como referência a foliões.

 

Matrafonas

As "matrafonas", sendo um dos símbolos fortes do Carnaval de Torres, demonstram a capacidade de renovação assegurando a fidelidade à tradição.
Os grupos de "matrafonas", homens mascarados de mulher, surgem por volta de 1926, segundo testemunho oral.

Esses grupos "mais não eram do que indivíduos que vestiam um fato de mulher - mas que não ficava bem a senhora nenhuma, procuravam era vestir um fato que lhes ficasse horrivelmente mal e feio".

Inicialmente, esses homens eram homens do campo, com poucas posses para comprarem máscaras e recorriam às roupas velhas das mulheres lá de casa, usando caraças feitas com caixas de sapatos *.

As "matrafonas" persistem no Carnaval de Torres porque se tornaram num dos seus ícones mais fortes e atualizam a sua sátira.
Não se confundindo nunca com um travesti, as "matrafonas" ora satirizam alguns dos toques femininos mais vulgarizados, ora dão uma visão da mulher, nem sempre inocente e nunca isenta, na ótica masculina.
A imagem da mulher socialmente "mal comportada" é um papel recorrentemente retomado por muitas "matrafonas".

A Associação de Ministros & Matrafonas reúne muitos dos atores mais participativos do Carnaval de Torres.

* in Carnaval de Torres- uma história com tradição 

 

Carros alegóricos

Os carros alegóricos do princípio do século XX patenteiam aquilo que são hoje: criatividade na sua conceção, carga satírica, valorização de elementos plásticos, animação das alegorias. Quase se pode dizer que a alteração mais significativa é a forma de tração que vem evoluindo ao longo dos anos.

Os carros alegóricos são, desde sempre, uma das imagens de marca do Carnaval de Torres. São-no, muito justamente, pelas suas qualidades plásticas, pela sua temática centrada na sátira a temas da atualidade nacional e internacional e pelas suas grandes dimensões.

A conceção e a construção são de execução inteiramente local. Nos últimos anos a conceção tem sido da autoria de Bruno Melo, Fernando Sarzedas, e de Jorge Travanca, com participações mais pontuais de Catarina Lemos, Catarina Sobreiro, Antero Valério e Pedro Silva. Como escultores, além de alguns dos criadores citados, é justo nomear Hélder Silva e Filipe Marques.

A temática inclui inúmeras figuras públicas da sociedade, da política e do desporto.
Os carros originariamente de tração animal, passaram depois a ser puxados por tratores. Nos últimos anos tem-se assistido à crescente introdução de carros auto-motorizados. As grandes dimensões desta dezena de alegorias está materializada nos 14 m de comprimento, 4 m de largura e que frequentemente atingem os 6,5 m de altura.

Em rigor a preparação do Carnaval começa por volta do mês de março quando a Comissão do Carnaval reúne para proceder à avaliação da edição anterior, definindo as componentes a alterar, melhorar ou a introduzir.

Em julho é lançado o concurso de conceção de carros alegóricos entre artistas plásticos locais, cuja seleção se processa até ao início de outubro.

A partir daí começa uma enorme azáfama nos estaleiros da Câmara Municipal e nas duas empresas locais a quem é adjudicada a construção.
Mobilizam-se carpinteiros, serralheiros e pintores que montam a estrutura dos carros alegóricos, enquanto os escultores realizam as caricaturas que vão marcar cada um dos dez carros. Simultaneamente reparam-se os cabeçudos das mazelas recebidas nos corsos anteriores.
Da enorme confusão em que se transformam os estaleiros emergem verdadeiras obras de arte de grandes dimensões, que recebem frequentemente alterações de última hora na sequência de novos factos marcantes.
No sábado anterior ao Carnaval, partem os carros, em caravana para o circuito dos corsos. É um alívio para todos, mas não é sinal de descanso: há que fazer constantes reparações ao longo dos dias de Carnaval.

 

Cabeçudos

"Sim, ele lá estava, o Carnaval. Nos cabeçudos que podem assustar os garotos mais pequenos, mas que o fazem rir a si, nas bandas de música e nos "Zés Pereiras", na cor dos fatos e das máscaras."

 in Católogo do Carnaval de 1961, da autoria de António Augusto Sales e de Trancredo Alberto Costa

Não deixa de ser curioso que os cabeçudos - um elemento indispensável no Carnaval de Torres - apareçam nos primeiros documentos iconográficos. Originariamente feitos de pasta de papel nunca deixaram de engrossar, adquirir novas e mais diversificadas roupagens e de desenvolver o seu acompanhamento musical - sempre grupos de Zés Pereiras.

 

Cocotte

Os primeiros corsos carnavalescos foram introduzidos pelas elites, no séc. XIX em Nice, Paris e Veneza, cuja matriz foi replicada noutras cidades europeias, numa tentativa de demarcação destes grupos sociais do entrudo popular e sujo. Os primeiros "cocottes" usados como projétil nos folguedos do Carnaval eram feitos de papel colorido atado em forma de bolsa contendo no seu interior papelinhos e areia.

Apesar de ser assumidamente um corso burguês, que aspira modernidade, o arremesso de objetos existente no entrudo permanece, substituindo-se a farinha, ovos, laranjas, por "cocottes", serpentinas ou flores, mais ao gosto e requinte das classes mais abastadas.

A primeira batalha de flores em Lisboa terá sido realizada em 1887 e terá entrado em declínio no início da década de 1930. No ano seguinte, realizou-se, em Torres Vedras, na Avenida 5 de Outubro, em recinto fechado, revertendo o lucro desse ano a favor da colónia balnear infantil, na praia de Santa Cruz.

Ainda hoje, durante o corso, os carros alegóricos percorrem as ruas da cidade e são arremessados "cocottes", remetendo para o imaginário das primeiras batalhas de flores.

Ana Almeida, Antropóloga 

 

Boneco do Entrudo

Designa-se de Entrudo, ao boneco, símbolo da quadra, tradicionalmente feito de palha, que é queimado anualmente na quarta-feira de cinzas, após o julgamento e leitura do testamento. A queima ou enterro do Entrudo encerra os folguedos do Carnaval, encontrando-se presente no Entrudo dito rural ou tradicional, prática que sobreviveu no Carnaval urbano de Torres Vedras.

O ritual do enterro inicia-se com o cortejo fúnebre, que parte do centro histórico até ao largo frontal do tribunal, sendo composto pelo julgamento e testamento (aos quais subjaz o momento de crítica política e social), culminando com a condenação do rei à morte e a queima do boneco que o personifica (queima do Entrudo).

Francisco Porfírio, carinhosamente chamado "Chico da Bola" construiu o primeiro boneco do Entrudo em 1944, e o último, em 2015, ano em que faleceu. O boneco começou por ser feito em palha como os bonecos tradicionais. Nessa altura, segundo o próprio "iam buscar a palha para encher o boneco ao Ti Gregório e à Casa Gonçalo, na Praça da Batata", no centro de Torres Vedras. Em seguida, apesar de ser difícil, era inserido o rastilho com bombas e depois, o boneco era vestido. Mais tarde, a cabeça do boneco começou a ser feita em pasta de papel e, desde sensivelmente 1998, que é feita uma armação de ferro no corpo (verguinha), na qual se coloca o rastilho com bombas. Depois, a armação é vestida com duas camadas (uma camada de plástico e uma de tecido). O tecido é colado ao plástico com cola branco. Por fim, é enfeitado a gosto.

Ana Almeida, Antropóloga